domingo, 22 de junho de 2014

Dialogando com a vida



Certa vez estava eu a pensar nos percalços da vida, mediante as frustrações vividas naquele determinado momento. Tudo o que eu pensava era que daria tudo para ficar frente a frente com a vida, caso ela se personificasse. A raiva – que por muitas vezes cega – deu luz a uma ideia não muito convencional. Pensei comigo: se dizem que a morte se personifica, por que não a vida?
Sabem aqueles jogos de invocar almas, demônios e a desgraça toda? Dei um Google it e pesquisei como eu poderia invocar a vida em sua personificação. Uma hora depois, meu quarto mais parecia uma missa de 7º dia de tantas velas espalhadas pelo chão. Uns passos não muito sincronizados, algumas palavras ditas em alto e bom som e a minha expectativa. Tentei fazer o tal ritual da melhor forma possível. Nada. Repeti meus movimentos, tentei uma, duas, três vezes... Nada. Mudei algumas palavras e tudo continuou da mesma forma. Sentei-me, ainda em frustração, e gritei “Sabe, a morte é mais eficaz!”. *PUFF*
Uma figura surgiu e me encarou com uma expressão tão descontente quanto a minha. Tinha não mais que 1,60m e, embora eu pudesse ver sua irritação através de suas sobrancelhas escuras que se apertavam e deixavam aparecer uma ligeira ruga entre elas, não conseguia distinguir seu rosto e dizer com quem (ou com o quê) se parecia. Talvez pelo meu espanto e por todas as perguntas que rondavam a minha cabeça naquele momento, não consegui falar. Então foi ela que se manifestou primeiro:
- Você de novo... Não sei por que ainda me surpreendo.
A frase me despertou daquele transe e imediatamente a indignação me tomou:
- Eu?! Como se a culpa de tanta coisa ruim que anda acontecendo fosse minha... Você é quem sempre brinca de piorar as coisas! Quando tudo está bem, você brinca comigo como se eu fosse marionete em suas mãos!
A Vida então se sentou em minha cama e eu podia ver sua expressão quase entediada diante da minha frase. Eu ainda não conseguia ver seu rosto, mas podia ver cada sentimento expresso nele. Ou talvez eu apenas sentisse. Ela se voltou para mim outra vez:
- Suas reclamações não são as únicas. Eu ouço muitas coisas todos os dias, não só de você. Mas há algo especial entre nós. Então estou aqui disposta a ouvir suas queixas.
- E o que tem de tão especial entre nós? – perguntei, mas não queria demonstrar tanto interesse quanto eu realmente tinha.
- Você logo saberá.
Aquele mistério me incomodava, confesso. Como não sabia quando teria outra oportunidade daquelas, tratei de começar a enumerar as minhas insatisfações causadas por tal criatura que se encontrava a minha frente.
- Pra começo de conversa: qual é o seu problema? Você se incomoda com a felicidade das pessoas? Aliás, não é isso. Se fosse, não teriam pessoas felizes e, por sinal, pessoas que não merecem. Você adora inverter as coisas. – disse as últimas palavras com um belo toque de sarcasmo.
- A felicidade é exclusividade então?
“Filha da puta”, eu pensei.
- Não, só acho que muitas pessoas lutam para alcançar a felicidade e dão com a cara na parede, enquanto outras conseguem isso sem fazer esforço algum. – respondi com uma raiva presa por toda uma vida, até aquele momento.
- Está bem. Prossiga em suas acusações.
- Não são acusações! São fatos! Se não fossem, você mesma não teria dito que as minhas reclamações não são as únicas. Acho que alguém não está fazendo o seu trabalho direito aqui...
De repente, todo o cenário mudou. Não estava mais em meu quarto e uma melodia se instalou tão alta que ecoava em cada canto da minha cabeça. Era agradável, envolvente, conhecida... Piaf. Edith Piaf ~padam padam~.
Esta melodia que me deixa obcecada dia e noite
Esta melodia não nasceu hoje
Vem de tão longe quanto eu venho
Arrastada por cem mil músicos.
Um dia essa melodia me deixará louca
Já quis dizer cem vezes por que,
Mas ela me cortou a palavra
Ela sempre fala na minha frente
E sua voz cobre a minha voz
Padam... Padam... Padam...
Ela chega correndo atrás de mim
Padam... Padam... Padam...
E me apanha com aquele “você se lembra?”
Padam... Padam... Padam...

- Se me lembro? – falei como se tivessem acabado de acertar uma paulada na minha cabeça. Tudo estava confuso e, de alguma maneira, eu sabia bem o que aqueles versos em francês significavam, embora meu conhecimento sobre a língua se limitassem a algumas palavras que eu havia aprendido com a tradução de músicas.
- Sim. Você se lembra?
Eu não entendia a pergunta. Não sabia onde estava. Apertei meus olhos por trás dos meus óculos de armação grossa e girei meu corpo para observar todo o lugar. A Vida havia sumido e a cena foi se clareando. Agora eu podia me ver conversando com uma amiga, como em um dia que eu já havia vivido. Eu reclamava de algumas coisas passadas, as quais me impediam de prosseguir em minha caminhada sei lá em direção aonde. Pude ver mais de perto que, naquele momento, meu único impedimento eram as minhas escolhas.
- Está bem, já entendi a charada. – eu falei.
Vertigem, mudança de cena, ligeira confusão mental. A música voltou a tocar e eu me senti da mesma forma que havia me sentido há alguns instantes.
É uma melodia que me aponta o dedo
E arrasto atrás de mim
Como um estranho erro
Esta melodia que sabe tudo de cor.
Ela diz: “Lembra-te de teus amores.
Lembra-te que é tua vez.
Não há razão para que não chores
Com suas lembranças nos braços”
E eu revejo as que restam
Meus vinte anos falam alto
Vejo os gestos que se debatem
Toda a comédia dos amores
Nessa melodia que prossegue sempre
Padam... Padam... Padam...
Os “eu te amo” de 14 de julho
Padam... Padam... Padam...
Os “sempre” que se compram com desconto
Padam... Padam... Padam...
Os “se quiseres” aos montões
E, tudo isso, para dar bem na esquina
Com a melodia que me reconheceu.

Nesse momento, eu estava em outra local e, novamente, me via. A Vida, por sua vez, não se fazia presente. Ali eu podia ver que eu estava relendo cartas e algumas conversas. Nem todas eram motivos para riso, mas guardavam boas recordações, apesar de tudo. Promessas do que parecia ser certo e para todo o sempre; fragmentos de palavras que me fizeram sorrir tantas vezes e que me devastaram logo depois; gente que parecia reflexo da minha alma e que se tornou só alguém que eu costumava conhecer. Eu relia e sorria, até mesmo da dor que senti e que me tornou mais forte. Foi através das experiências falhas e dolorosas do meu coração que pude juntar meus cacos e me refazer. Sem cola. Renasci. E nada mais me quebraria daquela forma. Mais uma vez eu entendi o recado da Vida. Ela notou e falou, já ao meu lado:
- Imagine que chato seria se todo mundo encontrasse a tal ‘pessoa certa’ logo de cara...
Tive que concordar. Quem nunca esteve no fundo do poço não pode experienciar o topo da mesma maneira. Então a parte final da música...
Escutem a balbúrdia que ela me faz,
Como se todo o meu passado desfilasse.
É preciso guardar um pouco de tristeza para depois
Tenho todo um solfejo desta melodia que bate...
Que bate como um coração de madeira.

- Antes ter um coração de carne do que de madeira. Ouço todas as suas reclamações, lhe acompanho todos os dias, nunca deixo de lhe escutar ou me preocupar com você. É mais forte do que pensa. Cada pedra que aparece em seu caminho e que julga ser eu a culpada de colocá-la lá faz com que se torne capaz de enfrentar e resolver problemas, assim como é capaz de ajudar outras pessoas. Você reclama, mas você gosta. Os desafios lhe atraem de maneira irresistível e sua fé em si faz com que possa alcançar seus objetivos e viver de maneira intensa.
Estávamos lado a lado, eu e a Vida. Olhando para frente, para o horizonte. Lembrei do ritual para invocar a Vida e me perguntei se a Morte seria capaz de me levar a tantos lugares e de maneira mais legal também. Sorri e me senti um adolescente rodeado de amigos e brincando de falar com mortos naquela brincadeira do compasso, enquanto o objeto gira e aponta letras e números. Olhei para o lado e aquele rosto, antes impossível de se identificar, estava tomando forma. Então ele me encarou. Aquelas sobrancelhas escuras – que mais pareciam ter sido pintadas de tão pretas – se conectavam com olhos também escuros – não tanto quanto elas – e que se assemelhavam a jabuticabas que se escondiam por trás de lentes... Lentes de óculos de armação grossa e preta, com hastes vermelhas, igual a minha. Espera... Bochechas grandes, queixo redondo e um sorriso que logo apareceu e que eu podia jurar ser daqueles cheios de ironia e que eu sempre costumava dar. Era eu, o tempo todo era eu.
- Bu! – a Vida (eu) disse, como que a me zombar.
*PUFF*
Dessa vez esse não foi o som da Vida aparecendo. Nem mesmo dela sumindo. Foi o som do meu corpo contra a minha cama, como se tivessem me jogado do telhado da minha casa diretamente nela. Meu coração estava descompassado e meus olhos doeram quando tentei abri-los de uma vez. A luz do meu quarto estava acesa, então tentei fazer isso aos poucos, enquanto me dava conta de outras coisas à minha volta. Como, por exemplo, na música que estava tocando. Era a mesma do sonho (sonho?), Edith Piaf – Padam Padam. Peguei meus óculos – que mais me faziam sentir o Clark Kent – e continuei observando tudo. Não havia vestígio de velas em meu quarto, apenas meu notebook ligado diretamente na tomada e o Media Player com o modo de repetição ativado. Eram 4:30 da manhã e também pude notar a garrafa de vinho vazia ao lado de minha cama, junta a uma taça que eu não havia conseguido esvaziar e se encontrava pela metade.
Imediatamente, peguei meu notebook e comecei a escrever sobre o ocorrido, apesar de não saber bem o que havia se passado. Obviamente, se tratava de um sonho, uma manifestação do meu inconsciente que queria me fazer enxergar coisas que eu não estava querendo ver e que, agora, eu me dispunha a interpretar (como se eu fosse Freud. Mal de psicólogo... Ou de boa parte deles).
Não sabia bem como começar, mas sabia sobre o que escreveria. Sobre mim, sobre as pessoas e sobre como costumamos creditar os acontecimentos de nossas vidas ao destino ou a alguma força superior (como uma verdadeira personificação da vida mesmo) e acabamos não nos responsabilizando pelas nossas escolhas.
Tudo o que eu pude ver com o que sonhei – ou sei lá o que – foi como as diferenças entre as pessoas tornam as relações interessantes, seja de modo positivo ou negativo. Mas, sobretudo, vi como as experiências negativas podem nos render bons frutos, ainda mais quando sabemos como plantá-los e colhe-los.
Por mais que a minha vida seja difícil, eu não me arrependo de nada. Porque o que eu podia fazer, eu fiz. Não foi por falta de tentativa que não consegui ou que deu errado. Eu simplesmente vivi. E vivo. Não acredito em verdades absolutas, mas também não vivo de mentira. Não me contento com pouco, não sei viver pela metade e a minha loucura não sabe fingir. E se tem algo que percebi é que muita gente nunca vai saber o que é isso. Não por não ter oportunidade, mas por não se permitir.
~ pausa para vomitar o vinho ~
Era como se eu estivesse mesmo precisando “vomitar” tudo isso. Palavras há tanto presas e que estavam guardadas em algum canto da minha mente. Coisas que me faziam retomar meu caminho e lembrar o que é responsabilidade minha e o que não é. Eu dou o meu melhor, não pelos outros, mas por mim. Eu sou o que eu posso ser e, enquanto eu puder tentar ser melhor, eu tentarei e serei, na medida do possível, do que está ao meu alcance. Se alguém não se contenta com o que sou, ou com o que tenho para oferecer, não é minha culpa. E talvez nem haja culpa de ninguém. O que sei é que não sou eu quem perde, pois, esteja eu onde eu estiver, estou por inteiro.
Não é a vida, não é o destino, não são os outros. Sou eu.
Talvez isso não faça sentido algum amanhã; talvez toda essa ‘filosofia’ seja uma merda e eu odeie esse texto e ignore essa experiência; talvez eu leve isso dentro de mim para sempre e de maneira consciente; talvez ninguém queira ler isso e talvez ninguém goste; talvez, também, alguém se identifique. Talvez... A vida e nós somos cheios de possibilidades. Basta abraçá-las.
Terminei de digitar, salvei o arquivo, desliguei o notebook. Olhei para a taça de vinho, ainda no chão e ainda intocada desde que acordei. Pensei: se existir uma personificação da vida, considere isso como uma oferenda. Sorri. Deitei. Dormi.

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Boatos de que isso aconteceu; boatos de que foi apenas um surto momentâneo da autora em decorrência do demasiado consumo de bebidas alcoólicas; boatos de que foi apenas inspiração a partir de experiências vividas, mas sem consumo de álcool. De toda forma, que história não tem um pouco de seu autor? O fato é que eu amo Piaf e que a história se conta não só por quem escreve, mas também por quem lê. Enjoy it ;)

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